Dever da memória
Sexta-feira santa em Jerusalém evidencia as contradições de uma terra dividida pela ação dos homens. Museu do Holocausto é hoje o guardião mais verdadeiro do sentido da Paixão
J. D. Vital
Publicação: 17/05/2014 04:00
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No Memorial do Holocausto, o Yad Vashem,
a denúncia do horror se mantém viva e alerta as consciências para o risco da
contemporização histórica
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A Via Dolorosa, por onde Jesus teria carregado a cruz a caminho do calvário, pode não ser o local mais piedoso para uma sexta-feira santa em Jerusalém. Pelo menos para quem conhece as cerimônias da Paixão em Minas Gerais. Com 600 metros de trajeto e placas indicativas nas paredes, a primeira das 14 estações da via-sacra começa onde existia um posto militar romano e hoje funciona uma escola muçulmana. Ela termina na Igreja do Santo Sepulcro e da Ressurreição de Jesus.
Em todo seu percurso, a Via Dolorosa – demarcada no século 8 por romeiros bizantinos – é um barulhento bazar oriental, desde os dias de Pilatos. Em alguns trechos, as lojas, de um lado e do outro, expõem mais bugigangas que a galeria do Mercado Central de Belo Horizonte localizada no piso superior que dá para a Rua Goitacazes. Difícil emocionar-se. Principalmente se o caminhãozinho de lixo fizer piruetas para manobrar naqueles becos, sob as metalhadoras de Israel em permanente conflito com os palestinos.
Construída no ano 326 por Helena, mãe do imperador romano Constantino, a Igreja do Santo Sepulcro causa arrepios. Na entrada, cristãos etíopes e russos choram debruçados sobre a pedra em que José de Arimateia teria depositado o corpo de Jesus descido da cruz. Helena mandou erguer a igreja após escavações em que foram encontradas a tumba de Arimateia e três cruzes.
O clima de devoção fica prejudicado pela truculência de religiosos ortodoxos. Eles organizam a visita à gruta onde o corpo de Jesus teria sido enterrado quase ao pôr do sol da sexta-feira, quando começa o shabbat. Os barbudos de veste preta expulsam os furões de fila, aos gritos e empurrões.
Apesar do alarido, a via-crucis é palco para a reflexão sobre a capacidade humana de odiar, flagelar, torturar e matar. Em Jerusalém, há outro endereço para uma visita guiada a um drama da Paixão contemporâneo. Um lugar de perplexidade frente à maldade que a intolerância religiosa e racial faz brotar no coração do homem. É o Yad Vashem – o Memorial do Holocausto. Inaugurado em 2005, ele recorda, segundo a estatística local, 6 milhões de judeus assassinados no século 20 pelo ódio antissemita sugado com o leite materno em sociedades cristãs ao longo de dois milênios.
Ao contrário dos museus da escravidão e de parte da mídia, que a cada 13 de maio se dedica a glamourizar a herança gastronômica do negro no Brasil, o Yad Vashem é um soco no fígado. Não alivia. Esfrega a realidade na cara da humanidade. Os depoimentos de sobreviventes em vídeo, as fotos de vítimas do nazismo alemão e a exposição dos uniformes listrados dos campos de concentração derrubam qualquer tentativa de contemporização histórica. A cada passo, uma verdade: cartas, joias saqueadas, álbuns de família, filmes, etc.
Em nove galerias, o museu mantém a denúncia em riste. A vida nos guetos; o menino de mãos ao alto diante de fuzis alemães; bispos alemães levantando a mão direita no gesto de saudação a Hitler. O horror de um vagão de trem para transporte dos judeus aos campos de concentração. Na vitrine, uma coleção de sapatos confiscados dos prisioneiros a caminho dos fornos de cremação. Dói ver os sapatinhos infantis.
Adversário da canonização de Pio XII, o Yad Vashem castiga o silêncio e a “complacência” do pontífice com o regime alemão. Antes de eleito papa, o arcebispo italiano Eugenio Pacelli fora núncio apostólico na Alemanha hitlerista e tornou-se conhecido por seu filogermanismo. Mas o memorial glorifica cardeais, bispos, padres e freiras que arriscaram suas vidas para salvar judeus.
A Avenida dos Justos entre as Nações tem 2 mil árvores plantadas em honra às pessoas que afrontaram os nazistas. Dois brasileiros constam da lista que inclui o industrial alemão Oskar Schindler: Luis Martins de Sousa Dantas e Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa.
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Embaixador em Paris, Sousa Dantas (1876-1954) emitiu mais de 500 vistos a judeus em 1940, apesar da proibição do governo de Getúlio Vargas. Aracy (1908-2011) trabalhava no consulado de Hamburgo, na Alemanha, onde conheceu o diplomata e escritor João Guimarães Rosa, com quem se casou mais tarde no México – os dois eram divorciados. Em 1938, Aracy ignorou a circular secreta 1.127, que dificultava a entrada de judeus no Brasil, e emitiu muitos vistos.
O memorial cita também o papa João XXIII. “Foi uma das pessoas mais sensíveis à tragédia judaica e fez muito para salvá-los.”
Ao fim da visita, as pessoas são convidadas a escrever uma mensagem no livro em que personalidades, como os papas João Paulo II e Bento XVI e o presidente americano Barack Obama, deixaram suas impressões. Externei minha tristeza. À noite, contemplando a cidade fundada por Davi mil anos antes de Cristo, dei conta que minha mensagem deveria ter se inspirado no salmo 137: infeliz serei por toda a vida, se me esquecer de ti, Jerusalém. Prenda-se minha língua ao céu da boca; fique seca minha mão direita, se eu não me lembrar do que vi no Yad Vashem; se ignorar ameaças de novos crimes contra a humanidade.
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Vendilhões modernos fazem de lugares
sagrados seus corredores de comércio
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À espera de um gesto
No primeiro mês do ano de 5.775 do calendário judaico, à primeira luz do dia 18 de abril de 2014, abro as cortinas de meu quarto de hotel localizado na estrada para Hebron. É primavera na terra de Israel, mês de Nissan. As muralhas cor de palha de Jerusalém irrompem pela janela.
À esquerda, a torre de Davi; à direita, a cúpula dourada da mesquita Domo da Rocha, de onde a rapaziada palestina lançou pedras sobre os soldados israelenses naqueles dias; e no centro, ao alto, o Monte das Oliveiras, muito frequentado por Jesus de Nazaré.
Dois mil anos atrás, vindo de Jericó, Jesus estava a caminho de Jerusalém para a Páscoa. Seu grupo encontrava-se no lado oposto de meu hotel. Ele vinha montado em um jumentinho. Descia o Monte das Oliveiras. O povo estendia mantos para ele passar. Gritavam “hosana ao filho de Davi”.
Lucas, no capítulo 19, conta o episódio: “Quando se aproximou e viu a cidade, Jesus chorou sobre ela” – na época com 40 mil habitantes, hoje, com 800 mil. Chorou porque previu o que os romanos fariam com a cidade tão linda: “Virão dias em que os seus inimigos construirão trincheiras contra ti, te rodearão e cercarão de todos os lados... Não deixarão pedra sobre pedra”. No ano 70 d.C., as tropas do general Tito arrasaram Jerusalém, após reprimir uma revolta dos judeus. Restou apenas um pedaço da muralha de sustentação do Templo de Salomão, o atual Muro das Lamentações.
Segundo a lei de Moisés, o feriado da Páscoa judaica, o Pessach, dura sete dias, relembrando a saída do Egito. Ao pôr do sol da sexta-feira, quando cristãos ainda percorrem a Via Dolorosa na Cidade Velha, os judeus recolhem-se em casa para o shabbat, o sábado. Exceto a tensão e o desfile de metralhadoras, tudo para em Israel: comércio, transporte público e até o elevador nos hotéis entra no modo automático, parando em todos os andares. Nem a omelete do café da manhã pode ser preparada pelos cozinheiros.
Em Belém, na Cisjordânia, a 10 quilômetros de Jerusalém, tudo funciona apesar das condições de isolamento impostas por Israel aos palestinos. Alegando razões de segurança e sob protestos internacionais, o governo israelense levantou um muro de concreto que corre por 760 quilômetros na fronteira e impede o trânsito de palestinos.
Num gesto surpreendente, o presidente palestino Mahmoud Abbas afirmou no final de abril que o “holocausto foi o crime mais atroz da era moderna”. Em sua tese de doutorado, ele negara o holocausto. Espera-se agora um gesto de Israel.
J. D. Vital é jornalista e autor de Como se faz um bispo segundo o alto e o baixo clero e Quem calçará as sandálias do pescador?
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