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Monday 27 February 2023

DA LAMA QUE FICA

   DA LAMA QUE FICA

 

Numa noite tranquila, no mês de maio, mês dos mais bonitos na primavera europeia, de repente a água interrompe o sono com uma violência ímpar. Nós morávamos num barraco de madeira,na cidade de Celje, entao Iugoslavia, hoje Eslovenia,  umas 150 pessoas, entre a estrada de ferro e um rio sujo, esgoto da indústria e das pessoas da cidade. A violência das águas foi tamanha que não desapareceu da minha cabeça até hoje. Minha mãe foi puxando a minha irmã, bem menor, para tirá-la da corrente, as pessoas gritando, e ninguém conseguiu levar nada consigo. Era salvar a vida, o resto ia com a água lamacenta, suja, violenta, com ratos e pedaços de madeira. Eu só consegui ver uma obra prima de um dos meus trabalhos manuais da escola, que ia entregar no dia seguinte, um abajur, sair flutuando.

 

Abaixo da chuva, esperando o dia amanhecer, fomos alojados nos vagões de transporte de gado, onde passamos meses até o barraco ser consertado e voltarmos para a casa, um quarto, com banheiro turco para 150 pessoas e cheiro de lama. Na escola no dia seguinte perguntaram quem sofreu com a enchente. Disse o endereço e a professora respondeu que naquele endereço não teve enchente. O endereço era Praça Marechal Tito 1 A. Realmente no número 1, em frente à estação ferroviária da qual parti alguns anos depois para o Brasil, não teve enchente.E na Praça com nove  do Marechal era priobido ter enchente.

 

 

Mas, nos éramos, mesmo no socialismo, a periferia, pessoas como a minha mãe que saiu da prisão e só arrumou um emprego de faxineira na estrada do ferro. Aí, no dia seguinte vieram as bondades das doações que eu joguei na cara da professora dizendo que não precisava de nada porque ela disse que não sofremos com a enchente. Filho de refugiado político e de exprisioneira, revoltado, triste e desesperado, não quis  receber a doação porque entendia que ela não foi dada de coração. Era uma doação de humilhação e não de ajuda.

 

A lama daquela noite, 70 anos atrás, nos persegue a vida toda. Minha mãe teve problemas na pele até a morte. Eu tinha medo de água e enchente, tanto assim que o primeiro lote de terra que comprei, quando cheguei ao Brasil, para construir a minha casa, ficava no alto de um morro. O cheiro da lama, a violência das águas e a misericórdia, quando se perde tudo e se depende totalmente de terceiros, nunca se apagam. Acompanham você a vida inteira.

 

As enchentes de São Sebastião trazem todas essas recordações. No fundo me senti estar lá, também morando no endereço 1 A e não no número 1. A tragedia humana desses eventos, não esquecemos o terremoto na Turquia e na Síria, e tantos outros que acontecem no Brasil, marca a vida. A pergunta é o que deve ser feito para evitar e mudar esse paradigma de desastres que esta assolando o país. Mariana, Brumadinho, enchentes na Bahia, Petrópolis, enchentes em Minas, seca no sul, incêndios e mais e mais.

 

Um país que tem uma ciência tão desenvolvida que pode, senão evitar, pelo menos reduzir os efeitos desses acidentes, está amorfo, parado esperando que aconteça o pior. É absolutamente incrível a baboseira das explicações pós desastre dos administradores públicos e políticos. É a famosa defesa putativa, quando você atira nas costas de uma pessoa que estava abrindo a porta porque pensava que ele ia sacar uma arma e te matar. Ninguém tem vergonha e não assume nenhuma responsabilidade.Os culpados são sempre os outros. E pior, não nos oferecem nenhuma segurança de que após a lama secar, a TV retirar o microfone e câmara, algo vai mudar.

 

É incrível que com todo o arsenal tecnológico, com tantos estudos e uma quantidade de dinheiro ímpar, esses eventos não têm uma gestão que possa reduzir o desastre. Sequer sirenes avisando ou sinos de igreja tocando.Só como exemplo, hoje você recebe algumas mensagens por dia de telemarketing, mas você não recebeu nenhuma mensagem avisando de chuvas torrenciais. Não a recebeu, porque como diz o humor português, não a mandaram. E não a mandaram porque não querem mandar.

 

Os trágicos eventos de São Sebastião só tiveram repercussão porque atingiram a elite branca paulista que tem casa por lá. Aconteceu em Araraquara no início do ano e só ficamos sabendo porque Presidente Lula estava lá enquanto Brasília estava sendo invadida pelos terroristas.

 

A lama que fica após essas enchentes não desaparece sozinha. Como disse antes, conhecimento para reduzir os problemas não falta. Inclusive a clara consciência dos problemas climáticos que estamos vivendo. Mas, enquanto o do 1 A está morrendo e o de número 1 pode pagar 30 mil para ser transportado por helicópteros de helioporto cedido por um bondoso empresário que ajudou com sua indiferença, como muitos alí, que o morro fosse derrubado para ter serviçais à disposição, pouco vai mudar. O discurso ESG está bem à prova para todos,  inclusive para os políticos e principalmente para eles. A força da natureza é implacável e hoje atinge o pobre mas não protege o rico. 

 

O cheiro da lama fica.Na alma dos que nada fizeram a não ser nos jogaram nela. E nos nossos corações para perdoar e esperar que não se repita esse lamaçal de indignidade.

 

Tuesday 21 February 2023

FROM BRAZIL OF CARNIVAL AND CARNIVAL OF BRAZIL

 FROM BRAZIL OF CARNIVAL AND CARNIVAL OF BRAZIL


These three days of revelry confuse the whole world. Some see in the Brazilian carnival a fun, cheerful people that overflows in the revelry, in the rhythm, in the dance and in the beauty all of their Brazilian being. Carnival in Brazil is the only activity, you can call it a popular festival, that unites the whole country. No date on the calendar, not even Christmas with Santa Claus, puts all races, religions, genders, social classes and everything else under the same hat. Carnival equals. But, even over, even in happy living and happy living.


There is no country in this world that has a party like this. Carnivals around the world not only do not have the swing of the Brazilian carnival, but are reduced to cities, closed and sectarian dances in the sense of bringing together only a tiny part of the population. A long time ago, the white millionaires of Cape Town, South Africa, invented the carnival there. Parade beauty, general joy, but something totally artificial, even killing the popular Mistral festival and having nothing to do with the country's cultural roots.


The contagious Brazilian joy has another unique characteristic in the carnival subject: it is universal, but very regional. Recife's carnival is different in form, but not in content from carnivals in other places, including famous ones, such as Rio de Janeiro. In all of them, not only the rhythm permeates, but the content, sometimes overshadowed by the beauty of the percussionists, the drumming and the brilliance that the carnavalescos present.


This content is mixed with pictures, music from today and yesterday. In their contemporaneity, carnivals, whether samba schools or blocks, never escape being the mirror of current or past society, even at the dances of the chic and rich. Carnival allows people to express themselves individually and collectively. The individual leaves the shell of a day to become an actor in a moment of a world that exists, but does not cease to be imaginary. An example of this is how gender, currently under wide discussion and with new values, was treated through carnivals. Or how politicians and their figures who take advantage of the popular soul are presented.


Carnival songs are the best of world poetry. They express the love and life of a people, and of each one. A moment lived eternally in the three days of revelry, which is lost in history. Tell me honestly, does the carnival in Cologne, Germany, have this soul of poetry?


The samba and frevo schools have an unsurpassed visual magic. It has a plot, it has rhythm, it has dance and they always tell us something to enrich our soul, our being, or as they say nowadays, our human essence. You leave a parade like this enriched, humbled by the ability of its participants to show and exhibit the best that the person, that is, the Brazilian man or woman, has.


There are two other aspects when we look at Brazilian carnival. One, well known, which is the economic. Carnival moves a lot of money, laundered or not, billions of reais and millions of jobs. A business that went from contravention to legality, who doesn't remember the bicheiros that dominated Carnival in Rio, and today is one of the biggest businesses in the country. It gives and creates jobs, allows the less privileged to be socially equal and the rich to participate. It is a social success for a rich blonde to show off at the Sambodromo, whether in Rio or São Paulo. There is only samba, the difference is who swings better.


But, the most fascinating aspect of the Brazilian carnival, for those who study management theories and practices, is the summary of all that is best in management in the world, which is the Brazilian revelry.


It brings together unique creativity, design, organization (have you ever seen the parade of the block or the samba school being late?), content, engineering with all the most advanced resources in technology and, first and foremost, impeccable, true and authentic leadership. See a samba school parade, in addition to the perfect branding, thousands of people in an impeccable association of human rhythm with machines, and a message that reaches the public beyond the days of the parade. And every year there is more innovation, nothing is repeated, there is always innovation.


Having lived for 40 years on the factory floor, one cannot but be envious of carnival artists, from any part of the country, but with deep admiration. Carnival shows the unique capacity of the Brazilian people to innovate, lead, organize, manage and obtain results, both in the economic and social fields, with the joy of living. It's a party bigger than the party itself, it's an eternal allegory of living well in Brazil, overcoming the difficult day to day, to say yes sir, we're happy, we sing and dance, but we're capable. And here goes the question, which other people have this set of capabilities gathered in their culture?

Sunday 19 February 2023

DO BRASIL DO CARNAVAL E DO CARNAVAL DO BRASIL


DO BRASIL DO CARNAVAL E DO CARNAVAL DO BRASIL


Estes três dias de folia confundem o mundo inteiro. Uns veem no carnaval brasileiro um povo divertido, alegre e que extravasa na folia, no ritmo, na dança e na beleza todo o seu ser brasileiro. O Carnaval no Brasil é única atividade, pode chamar de festa popular, que une o país inteiro. Nenhuma data no calendário, nem Natal com Papai Noel, põe abaixo do mesmo chapéu todas as raças, religiões, gêneros, classe sociais e tudo o mais. Carnaval iguala. Mas, iguala por cima, iguala no feliz viver e viver feliz.


Não existe país neste mundo que tenha uma festa assim. Os carnavais pelo mundo afora não só não tem a ginga do carnaval brasileiro, mas são reduzidos a cidades, bailes fechados e sectários no sentido de reunir só uma ínfima parte da população. Há tempos atrás, os milionários brancos de Cidade do Cabo, África do Sul, inventaram o carnaval de lá. Beleza de desfile, alegria geral, mas algo totalmente artificial, inclusive matando a festa popular do Mistral e sem ter nada a ver com as raízes  culturais do país.


A alegria contagiante brasileira tem outra característica ímpar no assunto carnaval: ela é universal, mas muito regional. O carnaval do Recife é diferente na forma, mas não no conteúdo dos carnavais de outros lugares, inclusive famosos, como o do Rio de Janeiro. Em todos eles não permeia o só o ritmo, mas o conteúdo, às vezes ofuscado pela beleza dos ritmistas, do batuque e do brilho que os carnavalescos apresentam. 


Esse conteúdo se mistura com figuras, música de hoje e  de ontem. Em sua contemporaneidade, os carnavais, sejam escolas de samba, sejam blocos, nunca fogem de serem o espelho da sociedade atual ou passada, mesmo nos bailes dos chiques e ricos. O Carnaval  permite que as pessoas se expressam individualmente e coletivamente. O indivíduo sai da casca de um dia para se tornar um ator em um momento de um mundo que existe, mas não deixa de ser imaginário. Um exemplo disso é como o gênero, hoje em ampla discussão e com novos valores, foi tratado através dos carnavais. Ou como os políticos e suas figuras aproveitadoras da alma popular são apresentados.


Músicas de carnaval são o melhor da poesia mundial. Elas expressam amor e vida de um povo, e de cada um. Um momento vivido eternamente nos três dias de folia, que se perde na história. Me diga com sinceridade, o carnaval de Colônia, Alemanha, tem essa alma de poesia?


As escolas de samba e frevo têm uma magia visual insuperável. Tem enredo, tem ritmo, tem dança e nos dizem sempre algo para enriquecer a nossa alma, nosso ser, ou como dizem hoje em dia, o nosso essencial humano. Você sai de um desfile desses enriquecido, humilde diante da capacidade dos seus participantes de mostrar e exibir o melhor que a pessoa, ou seja, o brasileiro ou brasileira têm.


Há dois outros aspectos quando olhamos para carnaval brasileiro. Um, sobejamente conhecido, que é o econômico. O Carnaval movimenta muito dinheiro, lavado ou não, bilhões de reais e milhões de empregos. Um negócio que saiu da contravenção para a legalidade, quem não lembra dos bicheiros que dominavam carnaval no Rio, e hoje é um dos maiores negócios que se tem no país. Dá e cria emprego, permite que os menos privilegiados se igualem socialmente e que os ricos participem. É um sucesso social para uma loira rica exibir-se no Sambódromo, seja do Rio ou de São Paulo. Ali só tem samba, a diferença é quem ginga melhor.


Mas, a mais fascinante face do carnaval brasileiro, para quem é estudioso de teorias e práticas gerenciais, é a súmula de tudo o  que existe de melhor em gestão no mundo, que é a folia brasileira. 


Ela reúne criatividade ímpar, design, organização ( você já viu desfile do bloco ou da escola da samba atrasar?), conteúdo, engenharia com todos os recursos mais avançados em tecnologia e, antes e acima de tudo, liderança impecável, verdadeira e autêntica. Veja um desfile de escola  samba, além do branding perfeito, milhares de pessoas numa associação impecável de ritmo humano com máquinas, e uma mensagem que atinge o público além dos dias de desfile. E a cada ano há mais inovação, nada se repete, sempre se inova.


Vivendo 40 anos de chão de fábrica, só se pode ficar não com inveja dos carnavalescos, de qualquer parte do país, mas com profunda admiração. O Carnaval mostra uma capacidade ímpar do povo brasileiro em inovar, liderar, organizar, gerenciar  e obter resultados, tanto no campo econômico como social, com alegria de viver. É uma festa maior do que a festa em si, é uma alegoria eterna ao viver bem brasileiro, superando o difícil dia a dia, para dizer que sim senhor, somos alegres, cantamos e dançamos, mas somos capazes. E aí vai a pergunta, qual outro povo tem esse conjunto de capacidades reunidas na sua cultura ?


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Sunday 12 February 2023

DO CAOS JURÍDICO E DA CALMA EMPRESARIAL

DO CAOS JURÍDICO E DA CALMA EMPRESARIAL


Como o STF não modulou a sua decisão - 6 ministros votaram contra a modulação e 5 a favor -, esse contribuinte poderá ser cobrado pela CSLL não paga (desconsiderando o prazo de decadência para a constituição do crédito tributário e considerando que todos os períodos já estão lançados) desde 1º/12/2007, ou seja, 90 dias após a publicação da ata de julgamento da ADI nº 15, quando o STF considerou em controle concentrado que a CSLL era constitucional e, portanto, deveria ser paga por todas as pessoas jurídicas que praticassem seu fato gerador. O caso concreto julgado tratou da CSLL e a utilizaremos de forma exemplificativa por aqui, mas o efeitos da decisão se irradiam para todos os demais tributos declarados constitucionais ou inconstitucionais pelo STF que contrariam decisões individuais e concretas dos contribuintes.

Esse texto faz parte de um longo artigo do advogado Luiz Gustavo Bichara do escritório de advocacia que tem o seu nome na placa.


Diziam no interior de Minas que não se briga com quem usa saia: mulher, padre e juíz. Aliás, nenhuma briga é boa, mas se você entender o texto acima, como empresário - a absoluta maioria dos empresários brasileiros são de pequenas empresas - então você merece ser empresário na Suíça. Mas, entendendo ou não, o fato é que uma boa parcela de empresas terá que pagar, após essa decisão, muito imposto. E tudo isso porque o mesmo STF decidiu no passado que não precisa pagar esse imposto.


Se a isso juntar a decisão de governo que no CARF, Conselho administrativo de recursos fiscais, o voto de Minerva só pode ser do fisco, ou seja as empresas na maioria das vezes perdem, podemos perguntar, qual é a próxima medida ou jurídica ou administrativa que vai bater nas empresas. Entramos numa escuridão jurídica, no túnel das incertezas, que não assusta, mas apavora.


O sistema tributário brasileiro faz de qualquer empresário e dirigente de empresa potencial criminoso. Se a isso se adicionar a legislação trabalhista e  outras, há um compêndio de impossibilidades de cumprir a lei que desafia qualquer ser humano. Os  governos tomam como infrator em potencial  o empresario, mas não se pergunta por que. Não é que não há infratores ou sonegadores, estamos vivendo agora o caso da Lojas Americanas, mas se o governo quer crescimento econômico e social, terá que, junto com o judiciário, colocar certos limites para que as empresas naveguem com tranquilidade nessa área, já que, quanto aos outros componentes que compõe a gestão, como produto, mercado, tecnologia etc. a imprevisibilidade é total.


No Brasil a gestão jurídico-fiscal na empresa consome mais esforços, energia e recursos financeiros do que qualquer outro setor. O diretor jurídico ou advogado tem mais poder na empresa do que qualquer outro diretor. E aí, em especial após essa decisão do STF, com a reforma tributária temos que evitar o caos tributário e jurídico. Com a promessa de que no próximo semestre já vamos ter a reforma pronta, parece que estamos nos apressando para ter a reforma, mas a sua consolidação jurídica e fiscal pode demorar. Sob ilusão de simplificação do sistema,  não é aceitável  aceitar que ela crie buracos negros fiscais que provocarão disputas jurídicas e dúvidas eternas resolvidas nos tribunais. 


Essa parte de reforma talvez seja mais difícil e requeira por parte do empresariado um preparo técnico para as discussões que às vezes falta, não por causa de conhecimento, mas por excesso de foco nos interesses individuais.

E, para ilustrar o que ainda nos espera, devemos lembrar que um recém escolhido ministro de TCU pela Câmara dos deputados, com apoio do governo, ficará lá com saúde, alegria e nossa tristeza por 36 anos. Também no STF tem dois ministros recém nomeados que ficam mais 40 anos. E nas prisões brasileiras tem aproximadamente 1 milhão de presos, dos quais, pelo que diz a imprensa, metade está sem julgamento. Ou seja, ignorar o ordenamento jurídico para que não só a democracia funcione, mas que funcione também a economia, e o país seja minimamente justo, será um dos itens mais necessários  do debate nacional. Talvez até lá valha a pena ler o livro do acadêmico José Murilo de Carvalho : A cidadania no Brasil.


DO CAOS 

Sunday 5 February 2023

A SIMPLICIDADE E COMPLEXIDADE DO BRASIL NO MUNDO

 A SIMPLICIDADE E COMPLEXIDADE DO BRASIL NO MUNDO


Há uma euforia enorme nos vários setores políticos e econômicos no Brasil, afirmando que o Brasil voltou. A interpretação dessa frase é que o mundo está alegre e feliz com o  novo governo que dialoga e apresenta valores que a maioria dos países aceita. O fato é que a agenda externa está cheia: veio o Chanceler alemão, Lula foi à Argentina e ao Uruguai, veio a Ministra de Negócios Estrangeiros da França (o antecessor dela não foi recebido pelo Bolsonaro, que mandou foto cortando o cabelo no horário que havia marcou o encontro com ele), Lula vai aos Estados Unidos e depois à Índia e China e mais e mais. A Noruega e  a Alemanha voltaram a investir no Fundo Amazônia e a imprensa mundial toma nota das ações do novo governo com uma atenção pouco vista nos últimos anos.


AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS DE UM PAÍS SÃO DE UMA COMPLEXIDADE INCRÍVEL E DE DIFÍCIL COMPREENSÃO PELO ELEITORADO. MAS ELAS SE RESUMEM A UMA SIMPLICIDADE COMPREENDIDA POR TODOS: A DEFESA DO INTERESSE NACIONAL. OU SEJA, QUALQUER POLÍTICA EXTERNA QUE GOVERNO LULA TIVER TERÁ QUE SE BASEAR NOS INTERESSES NACIONAIS.


E aí entra a questão crucial que é a definição dos interesses nacionais. Um belo exemplo disso é a compreensão distinta entre o governo e o público em geral sobre o  anúncio de um empréstimo para a construção de um gasoduto na Argentina, durante a visita do Presidente Lula a Buenos Aires. Enquanto o governo entende que é do interesse brasileiro financiar e com isso criar emprego no Brasil e ter acesso a mais gás, a opinião pública se espanta e pergunta por que financiar lá, se há tanta necessidade de investir no Brasil.


Ou seja, a política externa tem que estar alinhada com a política interna. A do governo Lula nessa área é extensa e clara, atendendo ao que consideram que são os nossos interesses. E o principal interesse do Brasil é o aumento de suas exportações e de investimentos. A ação política e diplomática é a base dessa premissa, claro que incluindo aí outros itens de igual importância.


É uma maravilha para qualquer presidente visitar outro país, ser recebido com tapete vermelho e com guarda presidencial perfilada. Mas, a realidade, depois que sai do tapete vermelho é outra, é a mostra dos interesses recíprocos e antagônicos. 


Na sua visita a Washington, devemos ter em mente como funcionam os Estados Unidos. Por exemplo, lembrar que temos mais de meio milhão de brasileiros lá e que quando são pegos na passagem ilegal da fronteira, são devolvidos ao Brasil acorrentados no voo, sejam crianças, adultos ou mulheres. Tudo dentro do melhor respeito aos direitos humanos. Também vale a pena lembrar do escândalo de espionagem da própria Presidente Dilma pelos serviços de inteligência norte-americanos na véspera da visita de estado (mais alto grau de visita presidencial). E o presidente lá era nada mais e nada menos do que Obama, democrata e querido por todos.


Talvez mais ilustrativa dessa relação foi a resposta que deu Robert Zoellick, alto funcionário do governo norte-americano americano e posteriormente presidente do Banco Mundial, quando reunido no Restaurante Maxim em São Paulo com cinco empresários e um banqueiro, na véspera de eleições presidenciais em 2002  ( Lula X José Serra): Gosto e respeito o José Serra. O trabalho que fez com remédios contra a AIDS e pelos genéricos em Doha (reunião de OMC naquele ano) foi extraordinário.Mas, Lula vai precisar mais dos Estados Unidos para governar do que o Serra.


No capítulo da vista aos Estados Unidos, está a postura do governo dos Estados Unidos com relação à permanência de ex-Presidente brasileiro lá. Ele está no território republicano da Flórida e com status não muito claro. O que convém hoje ao governo Lula, só Lula sabe. E se convém que o Bolsonaro fique por lá, Biden tem que estar de acordo.





Essa tônica de que o governo Lula precisa de apoio do exterior para se firmar na sua governabilidade é dúbia. Aliás, Lula foi claro na entrevista com o Chanceler alemão, dizendo que o Brasil está sim interessado em ser membro da OCDE, mas não como espectador, senão como ativo participante das decisões mais importantes. Neste item deve ser mencionada também a Amazônia. O mundo se preocupa com o meio-ambiente sim, com o pulmão do mundo, mas dentro de interesses deles (é só lembrar a expedição do ex-Presidente  norte-americano Ted Roosevelt na década de 1920 à Amazônia). 


Isso vale também para o acordo Mercosul-União Europeia. Sem dúvida alguma, esse acordo, por melhor que seja negociado pelos países do Mercosul, é fundamental para os europeus expandirem suas fronteiras econômicas e consolidarem suas posições. Portanto, como disse Presidente o argentino, no acordo, do jeito que está, estamos começando o jogo perdendo quatro a zero. Aliás, achar um equilíbrio de interesses nesse acordo e concluí-lo será a tarefa mais árdua da diplomacia brasileira neste ano, quando a melhor chance para fazer isso será durante a presidência espanhola do Conselho da EU e a do Brasil, no do Mercosul.


Nessa extensão de interesses brasileiros vale a pena prestar atenção no mapa abaixo. China, China, China. E aí está nosso principal parceiro de comércio exterior e de  investimentos. Não só nosso, mas de toda a América Latina. A visita presidencial a Beijing vai determinar o nosso futuro e principalmente se a proposta de uma acordo entre Mercosul e China for adiante. E se a isso se  adicionar a nossa participação nos BRICS, temos uma reviravolta histórica. E como os Estados Unidos tem uma relação concorrencial com China, podem estar efetivamente preocupados com a mínima chance de essa ideia  se realizar.


Nesse tabuleiro faltam muitas peças, como nossas relações com os países da América Latina, a reativação do Celac e da Unasul, com a África e com o Leste Asiático como um todo. E, na transversalidade, a nossa posição em relação ao  conflito armado entre Rússia e Ucrânia, Oriente Médio, direitos humanos entre outros.


Mesmo que no Brasil o único lobby organizado para influenciar a política externa seja de empresários, sendo a participação de outros atores, como partidos políticos e sociedade civil, pífia, há neste momento dois elementos fundamentais para termos a tranquilidade de  que a política externa vai estar alinhada aos interesses do Brasil: a alta qualidade de diplomacia brasileira, ou seja, o Itamaraty, e um Presidente que sabe onde fica o mundo e o Brasil neste mundo. Mas nunca é demais lembrar que se os eventos na área externa não forem bem entendidos pelo eleitorado, por melhores que sejam os resultados que apresentem, tornam se prejudiciais ao  invés de se adicionar às vitórias.