DA LAMA QUE FICA
Numa noite tranquila, no mês de maio, mês dos mais bonitos na primavera europeia, de repente a água interrompe o sono com uma violência ímpar. Nós morávamos num barraco de madeira,na cidade de Celje, entao Iugoslavia, hoje Eslovenia, umas 150 pessoas, entre a estrada de ferro e um rio sujo, esgoto da indústria e das pessoas da cidade. A violência das águas foi tamanha que não desapareceu da minha cabeça até hoje. Minha mãe foi puxando a minha irmã, bem menor, para tirá-la da corrente, as pessoas gritando, e ninguém conseguiu levar nada consigo. Era salvar a vida, o resto ia com a água lamacenta, suja, violenta, com ratos e pedaços de madeira. Eu só consegui ver uma obra prima de um dos meus trabalhos manuais da escola, que ia entregar no dia seguinte, um abajur, sair flutuando.
Abaixo da chuva, esperando o dia amanhecer, fomos alojados nos vagões de transporte de gado, onde passamos meses até o barraco ser consertado e voltarmos para a casa, um quarto, com banheiro turco para 150 pessoas e cheiro de lama. Na escola no dia seguinte perguntaram quem sofreu com a enchente. Disse o endereço e a professora respondeu que naquele endereço não teve enchente. O endereço era Praça Marechal Tito 1 A. Realmente no número 1, em frente à estação ferroviária da qual parti alguns anos depois para o Brasil, não teve enchente.E na Praça com nove do Marechal era priobido ter enchente.
Mas, nos éramos, mesmo no socialismo, a periferia, pessoas como a minha mãe que saiu da prisão e só arrumou um emprego de faxineira na estrada do ferro. Aí, no dia seguinte vieram as bondades das doações que eu joguei na cara da professora dizendo que não precisava de nada porque ela disse que não sofremos com a enchente. Filho de refugiado político e de exprisioneira, revoltado, triste e desesperado, não quis receber a doação porque entendia que ela não foi dada de coração. Era uma doação de humilhação e não de ajuda.
A lama daquela noite, 70 anos atrás, nos persegue a vida toda. Minha mãe teve problemas na pele até a morte. Eu tinha medo de água e enchente, tanto assim que o primeiro lote de terra que comprei, quando cheguei ao Brasil, para construir a minha casa, ficava no alto de um morro. O cheiro da lama, a violência das águas e a misericórdia, quando se perde tudo e se depende totalmente de terceiros, nunca se apagam. Acompanham você a vida inteira.
As enchentes de São Sebastião trazem todas essas recordações. No fundo me senti estar lá, também morando no endereço 1 A e não no número 1. A tragedia humana desses eventos, não esquecemos o terremoto na Turquia e na Síria, e tantos outros que acontecem no Brasil, marca a vida. A pergunta é o que deve ser feito para evitar e mudar esse paradigma de desastres que esta assolando o país. Mariana, Brumadinho, enchentes na Bahia, Petrópolis, enchentes em Minas, seca no sul, incêndios e mais e mais.
Um país que tem uma ciência tão desenvolvida que pode, senão evitar, pelo menos reduzir os efeitos desses acidentes, está amorfo, parado esperando que aconteça o pior. É absolutamente incrível a baboseira das explicações pós desastre dos administradores públicos e políticos. É a famosa defesa putativa, quando você atira nas costas de uma pessoa que estava abrindo a porta porque pensava que ele ia sacar uma arma e te matar. Ninguém tem vergonha e não assume nenhuma responsabilidade.Os culpados são sempre os outros. E pior, não nos oferecem nenhuma segurança de que após a lama secar, a TV retirar o microfone e câmara, algo vai mudar.
É incrível que com todo o arsenal tecnológico, com tantos estudos e uma quantidade de dinheiro ímpar, esses eventos não têm uma gestão que possa reduzir o desastre. Sequer sirenes avisando ou sinos de igreja tocando.Só como exemplo, hoje você recebe algumas mensagens por dia de telemarketing, mas você não recebeu nenhuma mensagem avisando de chuvas torrenciais. Não a recebeu, porque como diz o humor português, não a mandaram. E não a mandaram porque não querem mandar.
Os trágicos eventos de São Sebastião só tiveram repercussão porque atingiram a elite branca paulista que tem casa por lá. Aconteceu em Araraquara no início do ano e só ficamos sabendo porque Presidente Lula estava lá enquanto Brasília estava sendo invadida pelos terroristas.
A lama que fica após essas enchentes não desaparece sozinha. Como disse antes, conhecimento para reduzir os problemas não falta. Inclusive a clara consciência dos problemas climáticos que estamos vivendo. Mas, enquanto o do 1 A está morrendo e o de número 1 pode pagar 30 mil para ser transportado por helicópteros de helioporto cedido por um bondoso empresário que ajudou com sua indiferença, como muitos alí, que o morro fosse derrubado para ter serviçais à disposição, pouco vai mudar. O discurso ESG está bem à prova para todos, inclusive para os políticos e principalmente para eles. A força da natureza é implacável e hoje atinge o pobre mas não protege o rico.
O cheiro da lama fica.Na alma dos que nada fizeram a não ser nos jogaram nela. E nos nossos corações para perdoar e esperar que não se repita esse lamaçal de indignidade.
Muito tocante esse texto. Como se tivesse vivenciado 70 anos atrás, falando de dentro da alma. No Jornal da Jovem Pan, foi comentado que o governo ofereceu 2 milhões para ajudar as vitimas de São Sebastião, valor da Claudia Raia. O marido dela ofendido chamou de Joven Clã.. comparativo infeliz. Depois o governo ajustou o valor para 7 milhões. Mas em uma gestão anterior o Presidente gastou 18 milhões para reformar o 'palácio presidencial'. Este é um exemplo de quanto estão preocupados em 'resolver' questões históricas de tragérias, não de forma reativa. Grato pelo seu texto. Abraços
ReplyDeleteSua vida, caro Salej, sempre surpreende. Não conhecia esse episódio do sobrevivente da enchente, por mais que tenha pesquisado para escrever sua biografia. Quanto à qualidade do texto, nenhuma surpresa.
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