Das pedras,pedregulhos e perolas
(Crônicas dos quase 80 anos de vida)
L’chaim. À vida.
Faltam alguns meses para eu completar 80 anos. Escrevi muito sobre os assuntos mais variados, incluindo em algumas escritas experiências vividas.
Mas, agora vou relembrar, ainda enquanto ainda posso, as experiências vividas conectadas aos eventos de hoje.
A linha do tempo da gente é mais longa do que só a nossa vida. Ela vai até o ponto que a nossa memória alcança, ou seja, até a história dos nossos avós ou bisavós e continua até onde vai a vida de nossos netos e bisnetos. No meu caso, a história começa lá pelos 1880, quando creio que nasceu meu avô materno, Ivan, engenheiro agrônomo e vai até lá para 2100, quando a neta mais nova provavelmente terá a minha idade.
Mas vamos ao dia de hoje. Das estórias da China e Abu Dhabi que vivi e onde Lula passou.
Na Iugoslávia socialista, onde cresci, tinha uma feira internacional na capital da Croácia, Zagreb, na qual o maior pavilhão era da o China. Como crianças visitamos a feira e ficamos ali admirando os vasos chineses. Na escola estudávamos sobre a China, mas tudo era distante e a China não fazia parte do movimento de países não-alinhados.
Vindo para Belo Horizonte, a China ficou limitada a um restaurante chinês que era um dos mais chiques da cidade. E tinha uma loja de produtos chineses, Chang, que se instalou no ponto mais nobre da cidade, Savassi. E naturalmente a dona da loja foi presa por graça dos concorrentes e acusada de contrabandista. Hoje o filho dela que fez doutorado nos Estados Unidos é membro do Conselho Diretor da Comissão Fulbright, onde fui membro por dez anos, entidade que fomenta o intercâmbio educacional.
Mas, no meio tempo o governo militar acusou os diplomatas chineses de espiões, expulsou-os do país e depois de alguns anos, reatou e os mesmos chineses voltaram .
Na década de oitenta, um dos meus melhores amigos na Iugoslávia, esloveno, era Vice-Primeiro ministro do país e achou que o socialismo estava acabando e disse em público que peixe fede pela cabeça. Bem, a cabeça era o Marechal Tito e ele foi removido para ser Embaixador em Pequim. Os amigos me escolheram para fazer o discurso de despedida dele. A China já estava mudando.
E aí teve o massacre da Praça Celestial. José Alencar era Presidente da FIEMG e abertamente defendeu a atitude do governo chinês, com o argumento que você não administra um país com um bilhão de habitantes com regime democrático. Aliás, foi ele um dos primeiros que chamou a atenção para a alta produtividade da indústria chinesa. Ele dizia que se chinês faz camiseta por esse preço eu também posso. Pegou Josué e os dois foram para lá estudar o porquê. Encontrei os dois no voo de volta, me explicando com admiração o sucesso industrial chinês.
Aí também aconteceu Ding Xi Ping, o modernizador da China, que cunhou a frase que não importa a cor de gato desde que ele cace o gato. Aliás, o que foi dito também pelo guru de gestão Peter Drucker, que afirmou que não tem interesse de quem é a empresa Toyota, desde que carro funcione bem.
Entender a China sem conhecer a língua é um esforço hercúleo. Um embaixador da União Europeia, por sinal um sinólogo francês, em Beijing, perguntou a um colega embaixador de um país europeu quantas pessoas na missão dele falavam mandarim. Ele respondeu só os funcionários chineses. Então pegue as malas e volte porque você jamais vai saber o que acontece na China. Alguns diplomatas brasileiros que conheço falam mandarim ou pelo menos tentaram aprender.
Um dia perguntei a um alto funcionário diplomático israelense onde a filha dele estudava. Na China, vai aprender mandarim e lá é nosso futuro.
Quando perguntei ao adido militar chinês em Zagreb, que antes estava na Bósnia, se falava croata, me respondeu, falo sérvio, mas agora estou aprendendo croata. A diferença entre duas línguas para quem é da região, é mínima, mas absolutamente crucial devido às divergências étnicas. E o general chinês sabia disso. Em geral diplomatas chineses falam bem as línguas onde servem.
Muitos brasileiros visitam China, pedem pato laqueado, manuseiam bem os chop sticks, mas poucos a perceberam com tanta profundidade como a historiadora Carmen Lícia, que acompanhou seu marido diplomata Paulo Roberto de Almeida durante a Expo em Shangai. Vale a leitura o livro dela.
Na expansão da indústria mineira pelo mundo, quando fui Presidente da FIEMG, tivemos uma oportunidade única de nos conectar à China. Procurados por empresários protestantes de Minas, que queiram ajudar uma universidade dos Estados Unidos a se instalar na América do Sul, propusemos intercâmbio: nós ajudamos você aqui e vocês nos ajudam na China e Rússia, onde eles mantinham escritórios.
Os chineses deixaram os pregadores protestantes americanos atuarem na China. Sabiam quem eram e como se comportavam. E quando China começou se abrir para o mundo com Ding Xen Ping, os pastores protestantes ligados ao establishment universitário abriram 12 escritórios pela China para ajudar as empresas americanas a se estabelecerem por lá. Conheciam o país, a língua, e tinham a confiança dos chineses.
E com eles fizemos um acordo para representar a indústria mineira. Fui para a China, fiz um curso intensivo de 8 horas diárias por duas semanas sobre China com eles. Claro que não aprendi muito porque a base era fraca. Mas ficou na minha memória a frase chave: Nunca se esqueça quando tratar com qualquer chinês, por mais humilde que seja, que ele carrega consigo seis mil anos de história.
Aí veio a visita do Governador de Minas à China, com uma delegação empresarial. Eduardo Azeredo foi recebido por um membro de Politburo do Partido Comunista da China, levando no bolso um pedido de empreiteiras mineiras para participarem da construção da nova fase de hidroelétrica de Três Gargantas. Os chineses já tinham nesse meio tempo copiado o projeto de Itaipu com a ajuda dos engenheiros brasileiros que entregaram todos os pulos do gato, esperando que com isso teriam acesso a obra.
Visitei Hong Kong antes de ser anexado à China, mas também visitei Taiwan como chefe da delegação brasileira em encontro empresarial. A delegação de Taiwan era chefiada pelo Presidente da empresa de computadores Acer. E no jantar sentei ao lado do principal executivo da Câmara de Comércio e Indústria de Taiwan, poderosa, e comentei que como refugiado de um país socialista, entendia bem como funciona o regime chinês. E falei mais alguma bobagem. Ele me respondeu que eu não entendia nada, que lá e cá eram chineses, que Taiwan tinha, isso há 25 anos, investidos mais de 30 bilhões de dólares na China, veja a Foxconn, e que eles se entendem muito bem. Just business.
A presença chinesa no Brasil também teve seu momento chamado Feira do Paraguai em Brasília e Ponte da Amizade em Foz de Iguaçu. Os chineses souberam já naquela época driblar todas as barreiras e colocar seus produtos para a população brasileira. Com muita competência.
E vivi dois exemplos na área industrial. Uma grande rede de roupas masculinas no Brasil que só compra produtos na China, algo que poderia criar uns 5 mil empregos no Brasil. E a empresa que fundamos, a Tecnowatt, hoje em mãos de espanhóis, que não fábrica mais nada, importa da China e vende. O mesmo aconteceu com uma fábrica de medidores elétricos que saiu de Contagem para Manaus.
Às vezes esbarro nos chineses e seu modo de gerir as empresas. São de uma competência ímpar inclusive para impor a sua cultura. Várias vezes ouvi falar que expõem o pior funcionário a humilhação pública. Para incentivar a ser o melhor. E trabalham muito e a longo prazo.
Abu Dhabi fica para outra hora.