DA VACA MUERTA AO SAMBA
Relações argentino-brasileiras
A crença popular dos brasileiros sobre os argentinos teve uma erupção vulcânica na semana da visita do Presidente Lula ao país vizinho. Que os brasileiros não amam os argentinos, e vice-versa, é um fato do folclore político mais do que conhecido. E aí as notícias que circularam nas redes sociais, desde Lula roubar a Taça Jules Rimet até que o Brasil vai conceder financiamento à Argentina que será pago com alfajores, são mais um produto do ódio político interno do que real ojeriza dos brasileiros ao povo vizinho. A bem da verdade, não faltaram notícias sobre a visita que levantam as sobrancelhas .E a principal é sobre a moeda comum.
As visitas presidenciais são políticas e geram fatos políticos. Então a sua interpretação deve ser serena e em função dos resultados que possam gerar após a visita. A primeira constatação nesta análise deve ser que os dois países são vizinhos e vão continuar vizinhos. A segunda constatação é que nos últimos seis anos praticamente rompemos um fluxo de relações políticas e econômicas com Argentina. E o terceiro fato é que os dois presidentes, Lula e Fernandes, são amigos pessoais. Não se pode esquecer que Fernandes visitou Lula na prisão em Curitiba, e que foi o primeiro mandatário estrangeiro a vir visitar Lula após declarado o resultado das eleições.
Apesar de que Brasil nos últimos dois governos perdeu espaço no comércio entre os dois países, vale a pena salientar que mesmo assim tivemos um superávit comercial no ano passado superior a 2 bilhões de dólares num intercâmbio superior a 28 bilhões de dólares. Provavelmente o balanço de pagamentos também seja favorável ao Brasil, devido ao grande fluxo de turistas e serviços.
Um presidente e seu governo têm que entender que o país só exporta se tiver um mínimo de competitvidade da indústria para exportar. E o mercado argentino, sempre em crise e volátil, é um mercado em que a indústria brasileira, já que no agro somos concorrentes e grandes importadores de trigo, é competitiva. E é dever do governo brasileiro achar meios para proteger nossos exportadores e aumentar os negócios.
Portanto a missão de Lula foi indicar essas soluções. O Brasil perdeu muitos negócios por falta de mecanismo de crédito nas suas exportações de manufaturados, que geram mais empregos no país. E é absolutamente inverosímil que as exportações de engenharia para Cuba e Venezuela representam default e que devem servir de referência para o futuro de nossas exportações.
O debate que se abriu durante a visita sobre a moeda única foi mal comunicado e é um fato político da visita sem uma sustentação econômica, aliás muito bem descrito pela consultoria argentina www.abeceb.com
Outro assunto é o crédito do BNDES para o projeto Vaca Muerta, que já teve a participação da Vale, que perdeu muito dinheiro e o abandonou. Esse projeto, com suas reservas de petróleo e gás, o qual recentemente todos os embaixadores dos países da União Europeia acreditados em Buenos Aires, eleva a Argentina a ser quarto maior produtor de petróleo do mundo, e o segundo de gás. Ou seja, o projeto muito bem explicado pela consultoria McKinsey no seu site Insights, pode colocar a Argentina em um outro patamar econômico, criando mais de 240 mil empregos, mas sobre tudo numa outra posição geopolítica. E Brasil ignorar isso, é ignorar o nosso futuro.
Claro que sempre tem algum jabuti nas histórias. O de crédito para o gasoduto no valor de 689 milhões de dólares, diga-se de passagem aproximadamente 1.5 % do rombo da Americanas, seria fornecido provavelmente a uma empresa brasileira maior fabricante de tubos que pertence a uma empresa argentina. Com esse crédito, a empresa “brasileira” torna-se competitiva e pode derrotar os chineses. Vale também a pena indicar que esse financiamento é para o gasoduto que ainda não traz gás para o Brasil.
Salvo falha de memória, foi essa mesma empresa que tirou, segundo recente depoimento do empresário Benjamin Steinbruch ao Brazil Journal, a possibilidade de a CSN assumir o controle acionário da Usiminas. Foi uma decisão da então Presidente Dilma Rousseff, de ceder controle da Usiminas aos argentinos em troca de uma presença maior da Petrobras naquele país. Para alguns especialistas no assunto, essa troca se enquadra bem no dicionário de nomes de nossas tradicionais cervejas.
Não existe nenhuma dúvida, entre os empresários, economistas e investidores, que o Brasil recebeu, mesmo com um desastroso governo, um total de investimentos externos no ano de 2021 de 46 bilhões de dólares e a Argentina, 5.7 bilhões. A dívida externa do Brasil cresceu em 10 anos de 352 bilhões para 606 bilhões e a da Argentina, de 126 para 246. Só que o Brasil tem reservas para pagar, Argentina, não. Enquanto a inflação beira 100% ao ano no país portenho, aqui está em torno de 15%. (Dados publicados pelo Banco Mundial)
Seja como analisarmos essa relação, desde que não o façamos pelos termos futebolísticos, os dois países são sócios em um projeto chamado MERCOSUL, que devem reativar inclusive com o acordo com a União Europeia. Se os políticos tiverem um pouco de bom senso, como tiveram com a fundação de MERCOSUL, os dois países podem ser mais competitivos e com melhores índices sociais, ao aumentarem a cooperação e não ao contrário.As relações Mais tensas se deram no período de regimes militares nos dois países quando só floresceu a cooperação em tortura, Operação Condor e no governo Bolsonaro, como copycat da época do regime militar.
Se tivermos um mínimo do juízo, vamos reconhecer que temos inúmeros campos em que podemos obter resultados significativos para os dois países. Os argentinos, por exemplo, estão muito mais avançados em tecnologias nucleares que Brasil.Há uma cooperação, mas tímida. O espaço antártico e a área de ciências exatas são outros exemplos. Na área de IT, e em especial e-commerce é só lembrar de o Mercado Livre. Há investimentos industriais importantes bilaterais e, fora da indústria automobilística, há um espaço enorme de cooperação das cadeias de produção. Mas, temos que achar um meio de quebrar essa pretensa e idiota percepção cultural que temos uns dos outros, como se relação política e econômica fosse um jogo de futebol.De fato, os anos de política visceral que Brasil exerceu contribuiu muito para piorar essa versão cultural que predomina no nosso relacionamento.
No final do ano haverá eleição presidencial na Argentina. Então, a nossa amizade com o governo argentino não pode ser pessoal, mas de estado para estado, onde os dois interesses sejam convergentes, respeitando seus interesses nacionais.
No fundo, não se pode dançar tango ou samba no mesmo ritmo, mas pode-se dançar um ou outro num show de respeito e beleza.
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