A FRANÇA EM CHAMAS
É absolutamente calmo e absolutamente terrível. Estamos em St. Germain des Près, ao lado da igreja onde exilados brasileiros na década de 70 protestavam contra a ditadura militar em nosso país. Umas lojas abertas, outras como a Hugo Boss, completamente fechadas com pesados compensados de madeira para evitar saques que se espelharam pela França nos últimos cinco dias.
Um policial matou a sangue frio um jovem de 17 anos, Nahel M. Abordagem na estrada em Nanterre, subúrbio de Paris. O que e como aconteceu, sabe-se pouco, porque os policiais, ao contrário de São Paulo, não usam câmaras. O policial foi preso e a França pegou fogo.
Pela França inteira, incluindo a ilha de Reunion, durante a noite, os jovens, cuja idade média é de 17 anos, colocaram fogo em lojas, ônibus, carros, prédios públicos e tudo o que aprecia à sua frente. De 38 presos na primeira noite, o número subiu para 1311 na quarta noite, com 1350 viaturas queimadas, 2560 incêndios nas vias públicas, 234 prédios degradados e 79 polícias feridos. Por sorte e graça divina, sem nenhum morto a mais. Quarenta e cinco mil polícias na ruas, com armas defensivas das mais sofisticadas, brucutus ( veículos blindados parecendo sair de filmes) e cenas parecendo que estamos na Ucrânia e não na França.
Os revoltosos usam cocktails Molotov, fogos de artifício transformadas em armas, fuzis de caça, e sem dó atacam e saqueiam não só Apple e Nike, mas pequenos comerciantes cujas origens são as deles mesmo. De protesto justo por uma morte criminosa passou-se a uma espantosa guerra, onde pelo jeito se espalhou o medo pelo país inteiro e não se sabe quem é o inimigo.
O governo age com rigor e com cuidado. Como se enfrenta um exército de crianças de 12, 13 anos, jovens de 17 anos ? Não existe manual para isso. A justiça francesa, que não conseguiu julgar as mortes provocadas pelos policiais nos últimos anos, agiu rápido. Os primeiros jovens já foram condenados a trabalhos comunitários. E o governo estabeleceu a multa de 200 mil reais por família cujo filho estiver envolvido na pilhagem e incêndios.
O prejuízo econômico será enorme. As seguradoras tremem, o governo já disse que vai ajudar e os turistas estão fugindo. A França se tornou, com esse conflito, precedido pelos protestos recentes dos coletes amarelos e protestos contra a nova lei da previdência, um país absolutamente imprevisível do ponto de vista da estabilidade social. Mas as revoltas anteriores eram promovidas por outras gerações, por organizações visíveis. Este é um conflito diferente. De perplexidade, de uso intenso de Tik Tok, incontrolável, e de uma parte da população francesa que hoje é de crianças, mas amanhã serão adultos, eleitores e dominarão a política francesa.
As diferenças sociais e religiosas aliadas à questão racial, desintegraram o tecido social e colocam a própria governabilidade democrática em risco. É apavorante encontrar-se em país que explode por um acidente trágico como este. A revolta física de crianças e jovens deixa o país perplexo. Os líderes políticos não têm credibilidade para parar a revolta. As lideranças religiosas, em especial islâmicas pedem calma. Os judeus têm medo que a revolta também aumente o já crescente antsemitismo. O medo de sair na rua não é visível, mas na hora que a multidão começa a enfrentar a polícia, mesmo na TV, é apavorante.
E por que está acontecendo? Milhões de explicações apontam para uma marginalização de minorias raciais e religiosas em termos de oportunidade de ascensão social, aumento de gangues dominando as estruturas sociais e ausência de estado como agente seja de segurança, seja de desenvolvimentos economico ou promotor de serviços sociais. Ou seja, um modelo de estado falido, inclusive com relação a mudanças tecnológicas, muitas das quais os franceses lideraram.
Não faltam pensadores na França para explicar o estado das coisas. E não faltam os que não aceitam que o status quo só tem um futuro de revoltas. A França na sua história foi um país de rupturas, de mudanças sociais que mudaram o mundo. E agora, como fica?
2.7.2023.