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Sunday 2 July 2023

  



A FRANÇA EM CHAMAS

 

É absolutamente calmo e absolutamente terrível. Estamos em St. Germain des Près, ao lado da igreja onde exilados brasileiros na década de 70 protestavam contra a ditadura militar em nosso país. Umas lojas abertas, outras como a Hugo Boss, completamente fechadas com pesados compensados de madeira para evitar saques que se espelharam pela França nos últimos cinco dias.

 

Um policial matou a sangue frio um jovem de 17 anos, Nahel M. Abordagem na estrada em Nanterre, subúrbio de Paris. O que e como aconteceu, sabe-se pouco, porque os policiais, ao contrário de São Paulo, não usam câmaras. O policial foi preso e a França pegou fogo.

 

Pela França inteira, incluindo a ilha de Reunion, durante a noite, os jovens, cuja idade média é de 17 anos, colocaram fogo em lojas, ônibus, carros, prédios públicos e tudo o que aprecia à sua frente. De 38 presos na primeira noite, o número subiu para 1311 na quarta noite, com 1350 viaturas queimadas, 2560 incêndios nas vias públicas, 234 prédios degradados e 79 polícias feridos. Por sorte e graça divina, sem nenhum morto a mais. Quarenta e cinco mil polícias na ruas, com armas defensivas das mais sofisticadas, brucutus ( veículos blindados parecendo sair de filmes) e cenas parecendo que estamos na Ucrânia e não na França.

 

Os revoltosos usam cocktails Molotov, fogos de artifício transformadas em armas, fuzis de caça, e sem dó atacam e saqueiam não só Apple e Nike, mas pequenos comerciantes cujas origens são as deles mesmo. De protesto justo por uma morte criminosa passou-se a uma espantosa guerra, onde pelo jeito se espalhou o medo pelo país inteiro e  não se sabe quem é o inimigo.

 

O governo age com rigor e com cuidado. Como se enfrenta um exército de crianças de 12, 13 anos, jovens de 17 anos ? Não existe manual para isso. A justiça francesa, que não conseguiu julgar as mortes provocadas pelos policiais nos últimos anos, agiu rápido. Os primeiros jovens já foram condenados a trabalhos comunitários. E o governo estabeleceu a multa de 200 mil reais por família cujo filho estiver envolvido na pilhagem e incêndios.

 

O prejuízo econômico será enorme. As seguradoras tremem, o governo já disse que vai ajudar e os turistas estão fugindo. A França se tornou, com esse conflito, precedido pelos protestos recentes dos coletes amarelos e protestos contra a nova lei da previdência, um país absolutamente imprevisível do ponto de vista da estabilidade social. Mas as revoltas anteriores eram promovidas por outras gerações, por organizações visíveis. Este é um conflito diferente. De perplexidade, de uso intenso de Tik Tok, incontrolável, e de uma parte da população francesa que hoje é de crianças, mas amanhã serão  adultos, eleitores e dominarão a política francesa. 

 

As diferenças sociais e religiosas aliadas à questão racial, desintegraram o tecido social e colocam a própria governabilidade democrática em risco. É apavorante encontrar-se em país que explode por um acidente trágico como este. A revolta física de crianças e jovens deixa o país perplexo. Os líderes políticos não têm credibilidade para parar a revolta. As lideranças religiosas, em especial islâmicas pedem calma. Os judeus têm medo que a revolta também aumente o já crescente antsemitismo. O medo de sair na rua não é visível, mas na hora que a multidão começa a enfrentar a polícia, mesmo na TV, é apavorante.

 

E por que está acontecendo? Milhões de explicações apontam para uma marginalização de minorias raciais e religiosas em termos de oportunidade de ascensão social, aumento de gangues dominando as estruturas sociais e ausência de estado como agente seja de segurança, seja de desenvolvimentos economico ou promotor de serviços sociais. Ou seja, um modelo de estado falido, inclusive com relação a mudanças tecnológicas, muitas das quais os franceses lideraram.

 

Não faltam pensadores na França para explicar o estado das coisas. E não faltam os que não aceitam que o status quo só tem um futuro de revoltas. A França na sua história foi um país de rupturas, de mudanças sociais que mudaram o mundo. E agora, como fica?

 

2.7.2023.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sunday 16 April 2023

  

Das pedras,pedregulhos perolas

(Crônicas dos quase 80 anos de vida)

 

L’chaim. À vida.

 

Faltam alguns meses para eu completar 80 anos. Escrevi muito sobre os assuntos mais variados, incluindo em algumas escritas experiências vividas. 

 

Mas, agora vou relembrar, ainda enquanto ainda posso, as experiências vividas conectadas aos eventos de hoje. 

 

A linha do tempo da gente é mais longa do que só a nossa vida. Ela vai até o ponto que a nossa memória alcança, ou seja, até a história dos nossos avós ou bisavós e continua até onde vai a vida de nossos netos e bisnetos. No meu caso, a história começa lá pelos 1880, quando creio que nasceu meu avô materno, Ivan, engenheiro agrônomo e vai até lá para 2100, quando a neta mais nova provavelmente terá a minha idade.

 

Mas vamos ao dia de hoje. Das estórias da China e Abu Dhabi que vivi e onde Lula passou.

 

Na Iugoslávia socialista, onde cresci, tinha uma feira internacional na capital da Croácia, Zagreb, na qual o maior pavilhão era da o China. Como crianças visitamos a feira e ficamos ali admirando os vasos chineses. Na escola estudávamos sobre a China, mas tudo era distante e a China não fazia parte do movimento de países não-alinhados. 

 

Vindo para Belo Horizonte, a China ficou limitada a um restaurante chinês que era um dos mais chiques da cidade. E tinha uma loja de produtos chineses, Chang,  que se instalou no ponto mais nobre da cidade, Savassi. E naturalmente a dona da loja foi presa por graça dos concorrentes e acusada de contrabandista. Hoje o filho dela que fez doutorado nos Estados Unidos é membro do Conselho Diretor da Comissão Fulbright, onde fui membro por dez anos, entidade que fomenta o intercâmbio educacional.

 

Mas, no meio tempo o governo militar acusou os diplomatas chineses de espiões, expulsou-os do país e depois de alguns anos, reatou e os mesmos chineses voltaram .

 

Na década de oitenta, um dos meus melhores amigos na Iugoslávia, esloveno, era Vice-Primeiro ministro do país e achou que o socialismo estava acabando e disse em público que peixe fede pela cabeça. Bem, a cabeça era o Marechal Tito e ele foi removido para ser Embaixador em Pequim. Os amigos me escolheram para fazer o discurso de despedida dele. A China já estava mudando.

 

E aí teve o massacre da Praça Celestial. José Alencar era Presidente da FIEMG e abertamente defendeu a atitude do governo chinês, com o argumento que você não administra um país com um bilhão de habitantes com regime democrático. Aliás, foi ele um dos primeiros que chamou a atenção para a alta produtividade da indústria chinesa. Ele dizia que se chinês faz camiseta por esse preço eu também posso. Pegou Josué e os dois foram para lá estudar o porquê. Encontrei os dois no voo de volta, me explicando com admiração o sucesso industrial chinês.

 

Aí também aconteceu Ding Xi Ping, o modernizador da China, que cunhou a frase que não importa a cor de gato desde que ele cace o gato. Aliás, o que foi dito também pelo guru de gestão Peter Drucker, que afirmou que não tem interesse de quem é a empresa Toyota, desde que carro funcione bem.

 

 

Entender a China sem conhecer a língua é um esforço hercúleo. Um embaixador da União Europeia, por sinal um sinólogo francês, em Beijing, perguntou a um colega embaixador de um país europeu quantas pessoas na missão dele falavam mandarim. Ele respondeu só os funcionários chineses. Então pegue as malas e volte porque você jamais vai saber o que acontece na China. Alguns diplomatas brasileiros que conheço falam mandarim ou pelo menos tentaram aprender.

 

Um dia perguntei a um alto funcionário diplomático israelense onde a filha dele estudava. Na China, vai aprender mandarim e lá é nosso futuro.

 

Quando perguntei ao adido militar chinês em Zagreb, que antes estava na Bósnia, se falava croata, me respondeu, falo sérvio, mas agora estou aprendendo croata. A diferença entre duas línguas para quem é da região, é mínima, mas absolutamente crucial devido às divergências étnicas. E o general chinês sabia disso. Em geral diplomatas chineses falam bem as línguas onde servem.

 

Muitos brasileiros visitam China, pedem pato laqueado, manuseiam bem os chop sticks, mas poucos a perceberam com tanta profundidade como a historiadora Carmen Lícia, que acompanhou seu marido diplomata Paulo Roberto de Almeida durante a Expo em Shangai. Vale a leitura o livro dela.

 

Na expansão da indústria mineira pelo mundo, quando fui Presidente da FIEMG, tivemos uma oportunidade única de nos conectar à China. Procurados por empresários protestantes de Minas, que queiram ajudar uma universidade dos Estados Unidos a se instalar na América do Sul, propusemos intercâmbio: nós ajudamos você aqui e vocês nos ajudam na China e Rússia, onde eles mantinham escritórios.

 

Os chineses deixaram os pregadores protestantes americanos atuarem na China. Sabiam quem eram e como se comportavam. E quando China começou se abrir para o mundo com Ding Xen Ping, os pastores protestantes ligados ao establishment universitário abriram 12 escritórios pela China para ajudar as empresas americanas a se estabelecerem por lá. Conheciam o país, a língua, e tinham a confiança dos chineses.

 

E com eles fizemos um acordo para representar a indústria mineira. Fui para a China, fiz um curso intensivo de 8 horas diárias por duas semanas sobre China com eles. Claro que não aprendi muito porque a base era fraca. Mas ficou na minha memória a frase chave: Nunca se esqueça quando tratar com qualquer chinês, por mais humilde que seja, que ele carrega consigo seis mil anos de história.

 

Aí veio a visita do Governador de Minas à China, com uma delegação empresarial. Eduardo Azeredo foi recebido por um membro de Politburo do Partido Comunista da China, levando no bolso um pedido de empreiteiras mineiras para participarem da construção da nova fase de hidroelétrica de Três Gargantas. Os chineses já tinham nesse meio tempo copiado o projeto de Itaipu com a ajuda dos engenheiros brasileiros que entregaram todos os pulos do gato, esperando que com isso teriam acesso a obra.

 

Visitei Hong Kong antes de ser anexado à China, mas também visitei Taiwan como chefe da delegação brasileira em encontro empresarial. A delegação de Taiwan era chefiada pelo Presidente da empresa de computadores Acer. E no jantar sentei ao lado do principal executivo da Câmara de Comércio e Indústria de Taiwan, poderosa, e comentei que como refugiado de um país socialista, entendia bem como funciona o regime chinês. E falei mais alguma bobagem. Ele me respondeu que eu não entendia nada, que lá e cá eram chineses, que Taiwan tinha, isso há 25 anos, investidos mais de 30 bilhões de dólares na China, veja a Foxconn, e que eles se entendem muito bem. Just business.

 

A presença chinesa no Brasil também teve seu momento chamado Feira do Paraguai em Brasília e Ponte da Amizade em Foz de Iguaçu. Os chineses souberam já naquela época driblar todas as barreiras e colocar seus produtos para a população brasileira. Com muita competência.

 

E vivi dois exemplos na área industrial. Uma grande rede de roupas masculinas no Brasil que só compra produtos na China, algo que poderia criar uns 5 mil empregos no Brasil. E a empresa que fundamos, a Tecnowatt, hoje em mãos de espanhóis, que não fábrica mais nada, importa da China e vende. O mesmo aconteceu com uma fábrica de medidores elétricos que saiu de Contagem para Manaus.

 

Às vezes esbarro nos chineses e seu modo de gerir as empresas. São de uma competência ímpar inclusive para impor a sua cultura. Várias vezes ouvi falar que expõem o pior funcionário a humilhação pública. Para incentivar a ser o melhor. E trabalham muito e a longo prazo.

 

Abu Dhabi fica para outra hora.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sunday 9 April 2023

DA CHINA DE SEIS MIL ANOS

DA CHINA DE SEIS MIL ANOS

 

Quando um Presidente da República vai a um país, todos nós vamos com ele. Independentemente de se ele viaja com 40 deputados, senadores, ministros, carregadores de mala e pasta, puxa-sacos e 250 empresários, os olhos e ouvidos de todos nós estão com ele. As crianças na escola aprendem um pouco mais sobre o país, no caso de hoje a China, e os adultos vão desde, “ainda que não está aqui para fazer besteira” até “que bom que foi para trazer mais investimentos assinando 20 acordos de toda espécie e de toda utilidade”.

 

Nas visitas presidenciais é importante o que se vai dizer, mas mais importante é o que se vai ouvir. O que nos vamos dizer aos chineses, sempre falamos de potencial de investimentos, de nosso futuro e de nossa suposta importância no mundo, está claro. Mas, lembro-me do saudoso Cardeal de Belo Horizonte, fervoroso atleticano, Dom Serafim de Araujo Fernandes, a quem me queixei que o Papa ia receber um dos mais notórios neonazistas europeus, o austríaco Jorg Haider. Ai, Dom Serafim respondeu, “mas Sua Santidade vai lhe dizer alguma coisa que nos dos não sabemos o que é”.

 

Então, o será que os chineses podem dizer a Lula após terem recebido o primeiro-ministro da Espanha, o presidente da França e a presidenta da Comissão Europeia. E depois da visita ao Presidente Xi, reconfirmado por unanimidade para terceiro mandato, ao amigo para sempre, presidente Putin da Rússia. E houve ainda no fim do ano passado a visita do chanceler alemão. Todos indo para Beijing.

 

Não há dúvida alguma de que o momento para visitar é este. A comitiva empresarial, que foi na primeira parte, antes de mudança da visita presidencial, em função de doença do presidente Lula, foi impressionante. A França só teve na comitiva 50 empresários. E a Alemanha também. Mas, vindo com tantos empresários, não importa se uma boa parte foi conhecer o país a primeira vez e as despesas foram pagas pelas entidades empresariais, mas uma parte foi de fato fazer negócios. Da China, como se dizia antigamente.

 

Os chineses precisam de nossos produtos primários. Mas, precisam, antes de mais nada, de território para expandir sua base econômica. Então a nossa adesão à Rota da Seda, que é como coração de mãe, cabe todo mundo, é significativa. A liberdade de investir no maior país da América Latina sem restrições de setor, de tecnologia, ou área geográfica, é o que a China quer. O Brasil é um paraíso sem nenhuma restrição para eles. Até na área de educação, como na implantação de Centros Confúncio, eles têm espaço livre. Vendem o que querem, dominam certos setores como energia (espero que não desliguem turbinas e interruptores de luz) e estão se expandindo sem limites. Isso é ruim? Não sabemos ainda, mas certamente é bom para eles. Se tomarmos como exemplo só uma importadora de roupas da China que diz que se fabricasse no Brasil estariam empregados diretamente 5 mil brasileiros, temos a dimensão de quantos empregos nos criamos lá. Sem falar, por exemplo, dos 300 mil refrigeradores de uma única empresa chinesa a serem exportados para o Brasil. E claro, que como disse uma vez um dirigente da Câmara do Comércio China-Brasil, os chineses importam muito, permitem que Brasil tenha um saldo comercial (não confundir com saldo de balanço de pagamentos) significativo, mas sempre vão apresentar a conta.

 

Neste momento está em discussão o pagamento em moedas dos dois países, real e yuan. Um assunto mal explicado, que dá a impressão de que vamos, como os argentinos, ficar com bilhões de yuans não conversíveis para dólar ou euro para pagar nossas contas com outros países. Aliás, os argentinos fizeram isso, e ninguém pergunta como ficou.

 

Outra questão é nosso acordo com a União Europeia. A China também quer um acordo assim. E provavelmente será um acordo mais simples do que com os europeus. E nesse jogo, os Estados Unidos não querem que Brasil faça qualquer acordo a não ser com eles.

 

E falando dos Estados Unidos, não se pode omitir o fato que eles estão em situação conflituosa com a China. E não é só por causa de Taiwan, onde o Brasil mantém uma representação semi-diplomática há mais de 30 anos. A complexidade dessa relação ultrapassa as fronteiras brasileiras e é interessante observar para que lado o balanço brasileiro vai balançar. Provavelmente para lado nenhum, mantendo a postura de amigos com todos, e inimigos só em último caso.

 

Referente à guerra na Ucrânia, a última reunião do Xi e Putin em Moscou reuniu dois amigos que são considerados pelos Estados Unidos seus dois maiores inimigos deles. Então, a China só vai intervir no conflito ucraniano se isso reforçar a sua liderança em relação à Rússia e a União Europeia e servir para mandar um recado claro aos Estados Unidos sobre o poder que a China tem no mundo de hoje. Um pequeno exemplo dessa política chinesa foi o acordo patrocinado por Beijing entre a Arábia Saudita, aliada incondicional dos Estados Unidos e o Irã, inimigo mortal dos Estados Unidos.

 

Nestes dias em que o noticiário está falando muito de espiões russos no Brasil (claro que há espiões chineses aqui, o que não está claro é se há espiões brasileiros na China), é bom lembrar a história do rompimento das relações diplomáticas durante o  regime militar com a China. O Brasil acusou 11 diplomatas chineses de serem espiões, humilhou-os e os expulsou. Dez anos depois reatou relações diplomáticas e quem veio para abrir a Embaixada da China no Brasil? Os dez expulsos e a alma do último que morreu.

 

A China não é grande pelo tamanho, mas pelos 6 mil anos de sua história, inclusive de 200 anos da vinda dos primeiros imigrantes chineses ao Brasil. Entender isso e formatar uma parceria é um desafio que vai além de colocar a ex-presidente na presidência do Novo Banco, banco dos Brics e achar que somos parceiros só dentro da nossa visão.

 

 

 

Sunday 2 April 2023

DAS JOIAS DE DEMOCRACIA

 DAS JOIAS DE DEMOCRACIA 

 

Muitos doutores no Brasil estão deveras preocupados com a decisão da nossa maior corte de justiça de acabar com a prisão especial para os portadores de diploma de  curso superior. Como estamos na semana em que alguns, mesmo após 58 anos, ainda festejam a revolução, ao invés de reconhecerem que foi golpe, é bom lembrar como isso funcionava na época. Prendiam sem nenhuma base legal, aliás história contada num documentário da Globo.

 

Um dia, um preso reclamamou que tinha direito a prisão especial. O coronel que cuidava da prisão não teve dúvida. Cumpriu a lei: colocou na célula uma placa Prisão Especial e mandou cobrir o cidadão de porrada, para aprender que ele sim respeitava a lei, e o prisioneiro não tinha razão de reclamar.

 

A essa história comum se junta a lembrança da frase do então Vice-Presidente Dr.Pedro Aleixo, político da antiga UDN e respeitado jurista, que, respondendo a pergunta sobre como o STF vai interpretar o ignóbil ato institucional AI número 5 que instituiu a ditadura, respondeu: estou mais preocupado em como o guarda de trânsito vai aplicar o AI.

 

Os tempos de implementação da democracia pelos militares, com ajuda dos Estados Unidos, também foram recentemente lembrados num outro documentário pelo SBT sobre o Relatório Figueiredo, que descreve como foram tratados os índios durante o regime militar. Milhares de mortos, torturados, e expulsos. Ao ponto da historiadora Heloísa Starling, autora de Senhores de Gerais, entre outros livros, se dizer espantada com o segredo dessas barbaridades que, em vítimas, inclusive com inoculação do vírus da varíola e da gripe,  ultrapassam milhares de pessoas mortas e desaparecidas. E ai não há nada para se espantar quando você vê o que acontece nos dias de hoje com os Yanomamis na Amazônia. São os mesmos protetores dos índios, que se dizem melhores conhecedores do teritório, mas esqueceram os ensinamentos do Marechal Rondon e dos irmãos Villas Boas.

 

Tudo isso nos leva à reflexão sobre como manter um sistema democrático vivo no meio dos seus desvios. Neste momento vivemos momentos históricos que podem determinar o rumo da nossa civilização. O ex-Presidente dos Estados Unidos, um notório líder conservador inconsequente nos atos e gestos, está prestes a ser preso. Mas, não pelas barbaridades que cometeu no exercício de cargo, senão, no padrão de Al Capone, no deslize banal de suborno de uma atriz pornô.

 

Ou seja, mesmo que outras denúncias venham à tona, o julgamento será por uma coisa relativamente banal em relação a tudo o mais que ele fez. E o mais surpreendente é que mesmo que ele não possa se candidatar, as ideias destruidoras da democracia continuam prevalecendo entre os seus seguidores e candidatos do seu partido à presidência dos Estados Unidos. E a avalanche destruidora não para aí: muitos dirigentes no mundo preferem o trumpismo no governo norte-americano do que uma onda democrática. E nisso se inclui o Primeiro-Ministro de Israel Bibi, que com seus radicais religiosos quer subverter a qualquer custo,  inclusive o da segurança do próprio país, a sua ordem democrática. Sem falar das outras ditaduras no Oriente Médio, África e Ásia. A América Latina entra na lista sob título hors concours como era Clovis Bornay.

 

Aí chega-se à democracia brasileira, onde o Trump tropical também não é julgado pelas mortes que suas políticas provocaram pela ignorância da epidemia de COVID, mas por algumas joinhas que recebeu através do seu Ministro de Minas e Energia à meia noite (segundo o jornal O Estado de São Paulo, após o jantar quando provavelmente as coisas ficaram acertadas). A história dessas joinhas, diga-se de passagem, já que ninguém sabe quantos outros presentes rolaram pela família e auxiliares durante estes anos todos, merece uma série especial no Netflix, como aliás fizeram com a natimorta Lava Jato e sua personagem principal.

 

Como vai funcionar o regime democrático brasileiro, cuja base, corroída nos seus valores básicos, se mantém? Como nos Estados Unidos tem uma forma, por aqui o sistema de joinhas se amplia de outras formas (o arcabouço fiscal preve economia de  100 bilhões e não diz uma palavra sobre os 20 bilhões do orçamento secreto dos parlamentares) e não se vê a curto prazo uma mudança que permitiria uma consolidação democrática mais firme. Ou seja clonagem ou interpretação ao gosto de cada um, de que a democracia norte-americana representa num momento da história, às vezes, o Brasil experimentou isso em 1964 e agora com Trump, pode não ser o melhor modelo. Claro que isso vale para todos os modelos de gestão política que não levarão ao fortalecimento de uma democracia representativa e a uma economia de mercado.

 

 

Há uma ilusão de que as eleições são a base da  democracia. Sim, sem elas não há democracia. Elas são cláusula pétrea. Mas, depende de que forças democráticas participam, de quem são os atores. Pelo jeito que o mundo vai, estamos mais para a turma das  joinhas do que qualquer coisa. E a saída disso é uma só: o sucesso de medidas nos campos sociais,  políticos e econômicos de um governo democrático que convença os eleitores.  Não com falas, mas com fatos. 

 

 

 

 

Wednesday 22 March 2023

 DO GUARDA CHUVA E DO SEU DINHEIRO

 

Bernardo, filho do meu amigo, era aos oito anos um menino que ficou na memória da família, não porque chorava para ganhar sorvete, mas porque, ouvindo o tempo todo que MFM, Montepio da Família Militar, quebrou e todo mundo ficou sem dinheiro, chorou porque queria saber onde estava o dinheiro da sua poupança. Até que a mãe o levou à Caixa Econômica Federal, onde o caixa mostrou para ele o dinheiro da caderneta de poupança. Dinheiro vivo. Bernardo ficou feliz, estudou MBA nos Estados Unidos e ficou por lá, tornando-se diretor financeiro de grandes corporações.

 

Na outra ponta se dizia que banco só abre guarda-chuva no dia do sol. Ou seja, quando chove, banco não dá guarda-chuva. O Banco Nacional, que era patrocinador do Ayrton Senna, (as pessoas usam o boné com a marca do banco até os dias de hoje) dizia que dava guarda-chuva em qualquer tempo. Quando precisaram do banco, o guarda-chuva sumiu. E dizem agora, cash is king. O dinheiro está caro e, com esses juros no Brasil, ainda mais. 

 

E por estes dias quebrou, nos Estados Unidos o Bank of Silicon Valley, banco das start ups. Advertido pelas autoridades monetárias várias vezes por irregularidades na gestão, os diretores não se abalaram. Jogaram os avisos no lixo, até que o próprio banco foi para lixo. E o sistema ficou abalado.

 

Na Suíça, há vinte anos se discute a gestão do segundo maior banco, o Crédit Suisse, até que ele, também abalado, foi adquirido pelo maior concorrente, o UBS, sob a direção segura das autoridades monetárias suíças. E com isso milhares de brasileiros que têm dinheiro lá ficaram aliviados, porque o dinheiro na Suíça só tem como garantia a boa gestão e nenhuma proteção do governo suíço. E como há mais de 500 bilhões de dólares de poupança de brasileiros no exterior, é bom pensar o que garante esse dinheiro. Aliás, é bom lembrar os depósitos de judeus nos bancos europeus antes da guerra, que sumiram durante a guerra, mesmo para quem sobreviveu o holocausto.

 

A questão é quanto os poupadores são protegidos contra má gestão, roubalheira e similares no sistema econômico. Pelo jeito, nos Estados Unidos o sistema de controle funcionou, mas mesmo assim mostrou muitas falhas que poderiam ter sido sanadas a tempo para evitar o problema. Na Suíça, gastaram vinte anos com uma tolerância ímpar com a gestão de Crédit Suisse para, um minuto antes da meia noite, darem uma solução. E na solução foram perdidos 17 bilhões de dólares de investidores.

 

No Brasil temos o caso da Lojas Americanas, 8 bilhões de dólares, que anos a fio paga mal os seus fornecedores, quebra-os sem dó. E os bancos não sabiam de nada? A autoridade de controle do mercado, a Comissão de Valores Mobiliários, analisava os balanços e também não viu nada? E os donos? Esses nem merecem menção.

 

Você tem um outro caso de cegueira econômica. O metrô de São Paulo, sob concessão, está todo santo dia funcionando mal. Conseguem até bater um trem no outro, coisa que nem na época da maria fumaça acontecia. E o poder público diz que mandou aviso e multou. E daí? Os trens continuam não funcionando.

 

Se a isso se adicionar a insegurança quanto a assalto, violência no trânsito e exacerbação política, desastres naturais provocados também pela negligência governamental, chegamos à pergunta: como somos protegidos pelo estado? No caso brasileiro especificamente os órgãos de controle controlam muito, mas dentro do princípio de que enxergam os detalhes, punem os pequenos e para os grandes há sempre uma solução. Claro que há exceções, como foi o caso das joias na alfândega brasileira, que tão somente confirmam a regra.

 

A democracia pressupõe o estado protegendo o cidadão. E por isso o estado precisa ser eficaz na chamada law enforcement, aplicação da lei. Caso contrário, a democracia se enfraquece.

 

 

 

 

 

 

 

Monday 13 March 2023

 DAS NUVENS NA POLÍTICA E DAS TROVOADAS COM GRANIZO NA ECONOMIA

 

Dizem os políticos mineiros que a política é como as nuvens: você olha agora e vê um céu coberto de nuvens, daí a pouco está tudo claro. Na política, a percepção do fato é diferente da percepção do mesmo fato na economia. E no Brasil, onde temos uma economia muito dependente do exercício da política em diversos níveis e em especial na área governamental, pode-se dizer com tranquilidade que os políticos fazem nuvens, ficam nas nuvens, mas o que cai das nuvens, até neve já temos, cai na cabeça do povo, e se chama economia.

 

A máxima de que o mundo está perturbado e complexo é de uma simplicidade ímpar. O mundo sempre foi complexo e nos fazemos parte dele. Mas a definição de mundo se resume, para nós que estamos no Brasil, ao Brasil. Neste exato momento, no mundo da economia, todo mundo quer saber qual o prumo e qual o rumo que os políticos, seja o congresso ou o governo, vão imprimir ao país. E aí algumas versões estão ficando claras ao ponto de todo mundo ficar ainda mais confuso.

 

Primeiro, que as políticas sociais são a base de toda a ação econômica do governo. Ou seja, bolsa familia, aumento de salário mínimo, minha casa, minha vida e mais alguns programas nessas linhas serão suficientes para fazer o país crescer.

 

Em segundo lugar, que a governabilidade está acima de tudo porque sem ela o governo pode cair. Então, para se manter no governo e conseguir seus objetivos, o custo não importa. O fatiamento da gestão entre vários atores políticos, tão diversos na suas crenças e valores mas todos unidos em usufruir do poder, pode facilitar o coalizão política, mas enfraquece totalmente os resultados na governabilidade econômica. As lideranças políticas cuidam da gestão de seus interesses e não dos projetos que levam ao desenvolvimento. Não há também definição clara nem de objetivos e nem de táticas a serem implementadas. Cada um faz o que quer, do jeito que quer. O exemplo mais eclatante disso é o do criador de cavalos no ministério de comunicações, uma área fundamental no desenvolvimento. Desde que contribua para a governabilidade, pode fazer o que quiser, inclusive não fazer nada, que desenvolve o país.

 

O próximo item é a reforma tributária. Um esforço gigantesco que tem que ser feito. Absolutamente normal que os interesses seja diversos e adversos. Mas, tem que ter uma batuta que ponha ordem nesses interesses, em especial na área empresarial. E aí, pela experiência anterior, todos olham para o seu bolso e ninguém olha para o bem comum. Nesse tipo de processo não há como só ter derrotados ou só vencedores. Todos perdem um pouco, para todos ganharem muito. E aí o governo não pode gastar capital político agora com assuntos menores porque vai precisar dele para a negociação final. E no meio das entidades empresariais não há só divergência sobre temas fiscais, há forte presença de populismo bolsonarista. É só lembrar a adesão da entidade empresarial industrial mineira com promessa de um ministério.

 

Há certa inquietação quanto à cobertura que o governo vai dar às invasões do MST e outros movimentos radicais. A invasão das fazendas da Suzano acende um sinal vermelho para qualquer empresário no Brasil e no exterior. Produtiva, e a Suzano é, ou não, propriedade privada ou pública, tem que ter a guarita da lei. E a lei tem que ser cumprida. Quando o governo não age, não é só  falar, é agir, a confiança cai, o investimento cai, a  produção cai. E isso está acontecendo na área rural. O episódio do Carnaval Vermelho em Mato Grosso ficou na cabeça dos produtores e, queiramos ou não, corre-se o risco da produção agrícola, independentemente das variações do mercado internacional e da vaca louca, cair. Só se planta se houver mercado e segurança. Senão, não se  planta. Simples. E na roça se diz que quem foi mordido por cobra tem medo de barbante.

 

Um outro elemento de preocupação é o que está acontecendo no varejo. O efeito Americanas está sendo totalmente subestimado. Nem os bancos conseguem reverter a situação na qual está claro que tudo está sendo feito para proteger os acionistas majoritários e deixar na chuva os trabalhadores, fornecedores, bancos e todos os demais. Ninguém do governo está percebendo o efeito dominó que a solução em curso está tendo, não só na cadeia de suprimentos, mas em todo o varejo, que está balançando mais do que árvore no vendaval. As vendas estão caindo e a pergunta é, quem serão os próximos. Não quem será, mas quem serão.

 

A questão da inflação e dos juros, ataques ao Banco Central, fazem parte da cartilha. 400 % de juros no cartão de crédito são indecentes. Com a crise das Americanas, o crédito ficou escasso e caro. E ataques do governo ao BC, e mudança da diretoria no meio do mandato, mostram que governo está matando o mensageiro, mas não sabe ou não quer resolver o problema. O dragão da inflação é um assunto muito sério, os juros são uma parte da situação, e corrói todas as conquistas sociais.

 

 

Quanto ao mundo e nossa relação com ele, é bom que tenhamos uma relação política, mas que leve a uma relação econômica que contribua para o nosso desenvolvimento. Se estamos, por razões de velha  amizade e antiga admiração pessoal, apoiando Daniel Ortega na Nicarágua, estamos dizendo aos brasileiros que estamos de acordo com o que ele faz. Ou seja, faz o que Hitler fazia, o que Tito vez com a minha familia na Iugoslavia: se estiver em desacordo com meu governo, sai e perde a cidadania e os bens. Bem, se eu apoio esse tipo do governo, então eu acho isso está certo e rola de maneira maluca nas nossas cabeças que vale também para as invasões no Brasil.

 

Aplicar a reciprocidade nos vistos com os Estados Unidose e outros é  irracional do ponto de vista econômico. A dignidade nacional não fica melhor porque eles têm que ter visto para vir ao Brasil. Ao contrário, ao estarmos abertos é que somos mais dignos e soberanos.

 

Desafios de hoje geram soluções de amanhã. O tempo da escuridão em que vivíamos, mesmo com joias brilhando como lanterna na caverna de Ali Babá, não devem permitir que as nuvens que os políticos dominam, façam de novo outro tipo de escuridão ou então que caia granizo nas nossas cabeças. A política é guia da economia, mas não pode ser sua destruição.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Monday 6 March 2023

DO “IN VINO VERITAS”


 

A expressão, no vinho está a verdade, cabe feito uma luva na hora que três das mais importantes vinícolas brasileiras são acusadas de práticas ilegais no trato de seus trabalhadores. As vinícolas usam mão de obra temporária durante a vindímia, que no Brasil ocorre no início do ano, e essa relação é complexa no mundo inteiro. Os trabalhadores vêm por um período muito curto, com trabalho muito intenso, e em geral mal pago. Aliás, os antecestrais dos que hoje dirigem as vinícolas vieram da Itália nessas condições. O mesmo acontece com a colheita de café. Há cem anos atrás vinham navios com imigrantes para essa finalidade. Alguns ficaram no Brasil e outros voltaram para a Europa.

 

As cenas apresentadas na TV são chocantes. Aliás, não é o único caso apresentado de trabalho escravo no Brasil. Temos quase tradição, em algumas áreas, desse tratamento. Às vezes isso aparece, mas na maioria dos casos e em especial longe de centros urbanos, fica escondido até um ou outro caso aparecer em público.

 

No caso gaúcho, há de se perguntar se a prática de trazer os trabalhadores para a vindíma de um lugar distante a mais de 3 mil km, só aconteceu este ano, ou só foi descoberta este ano. Por outro lado, as três empresas acusadas são tradicionais. Uma delas é centenária e o quinto maior exportador de espumantes para os Estados Unidos. As outras duas foram fundadas há noventa anos. E também são exportadoras. Aliás, 60 % das  vinícolas brasileiras estão na Serra Gaúcha, que produz 90 % de vinho no Brasil. 

 

O vinho brasileiro é exportado para 53 países, quase 13 milhões de litros no ano passado, e  ganhou inúmeros prêmios internacionais. Tanto o consumo interno como a exportação têm crescido. 50 milhões de brasileiros bebem vinho, ou seja, a   média per capita é de mais de 2 litros por ano.

 

Apesar de que o brasileiro rico prefere vinhos importados, que têm um mercado aberto e lucrativo no Brasil, o vinho brasileiro, com ajuda da Embrapa e muitos investimentos, melhora de qualidade a cada ano. No ano passado, o consumo, que  cresceu muito durante a epidemia, caiu: 6.2% para vinhos importados e o dobro, 12.8 % para vinhos nacionais. 

 

Ou seja, a desgraça nunca vem sozinha. Que o episódio apresentado e apimentado com declarações xenofóbicas de um vereador da região vinícola gaúcha, tem consequências para as três empresas, tem. A pergunta que não teve resposta é, isso acontecia e ninguém viu? Os dirigentes de empresa, sua área gerencial, o pessoal da Embrapa que vive nas vinícolas, clientes que inspecionam, turistas que visitam durante vindímia as vinícolas, todos com olhos e ouvidos fechados? E aconteceu em outras empresas? Deu ruim. Não ficou bem e ninguém esclareceu nada. Aliás, a gloriosa PRF, que era tão ciosa de suas funções durante as eleições, não vê o transporte dessas pessoas num trajeto de 3 mil quilômetros?

 

As rainhas do vinho com seu charme visitavam presidentes da república e promoviam vinhos gauchos. E os negócios mesmo com dificuldades iam bem. O fato é que episódios como esse, quando se trata do produto final, acabam com a história bem sucedida e trabalhosa, num piscar de olhos. Acidentes com pizzas da Nestlé na França, leite para crianças da Lactalis, também na França, vinhos austríacos que usava sulfato venenoso para “melhorar “ a qualidade ou acidentes como de Brumadinho e Mariana, custam muito para o consumidor, a sociedade e as empresas.

 

Os valores morais e éticos dos consumidores, em especial mais jovens, evoluíram, e são mais rigorosos. As empresas, aliás na área de mineração está sendo feito isso mais recentemente, têm que  incluir na sua gestão também esses valores. Se assistir o filme Vindima, em espanhol sobre como eram tratados os trabalhadores emigrantes italianos quando chegaram ao Brasil e à Argentina, fica a pergunta, os herdeiros não apreenderam nada?