DO FOGO LENTO NA FRANÇA E ONDE MAIS
Saímos de Paris sãos e salvos. Salvos de quê? Do caos que não nos atingiu numa semana em St. Germain des Près. Não vi um distúrbio a não ser na TV. O único aborrecimento ocorreu na saída da Ópera de Paris Bastille, às 11 horas da noite, quando o transporte público havia sido suspenso e o táxi que nos atendeu se perdeu e o motorista que insistia falar num inglês difícil de entender, nós pedindo para falar francês, se exaltou e nos chamou de racistas. Voilà.
Mas, ter escapado à desordem que atingiu a França não diminui o medo que envolveu o país. É mais por milagre que por competência que não houve mais mortes. E que a situação ficou sob controle. Mas ficaram feridas e situações longe de serem resolvidas. A justiça funcionou de uma forma rápida. Os jovens foram julgados com ato sumário, ou seja,em 30 minutos o juíz declarava a sentença, na maioria das vezes serviço comunitário, mas também detenção quando comprovado o ato de vandalismo. As seguradoras estão examinando os prejuízos, os impostos estão sendo postergados e bancos terão que ter paciência para receber.
Calma após a tempestade, com debate do que aconteceu aindafervilhando. O fato é que todos os problemas continuam e que os políticos franceses não indicaram como vão resolvê-los. A ênfase sobrereforma da polícia e sua atenção, o pivô de revolta foi a morte de um jovem por um policial, é parte de problema. A profunda divisão racial e religiosa, pode se dizer de duas Franças, dos brancos e dos outros, permanece. Não se trata mais só de imigrantes, agora são franceses de classes diferentes. Oriundos de ex-colônias, na África são 33 países francófonos, do Magreb, fazem parte de uma França à margem da França que nos vemos e imaginamos.
Os verdadeiros guetos criados ao redor das grandes cidades, dominados por tráfico e gangues, cujo papel aliás nestes últimos distúrbios foi pouco discutido, são incontroláveis. Os pais acusados pelo Presidente Macron de que não controlam seus filhos, respondem como: trabalho dia e noite, 50 % do meu ganho vai para aluguel, não há creches e as escolas não abrigam as crianças. E quando crescem não têm emprego.
Escrever sobre os problemas franceses é uma maravilha. Todo mundo é analista de outros. Mas, é impressionante a reação das pessoas que, na crise francesa, não conseguem enxergar as similaridades com a situação brasileira. Quando fui candidato a deputado federal, uma mãe me disse que o único emprego que seu filho conseguia era no tráfico. Para ir aocolégio tinha que pagar dois ônibus, não tinha nenhuma possibilidade de trabalhar como aprendiz porque não existiam empresas no bairro, e não havia quadras de esporte. Outra mãe me pediu dinheiro para compraruma corrente para prender seu filho que se drogava. Isso mudou?
Estamos vendo o caso de militares do exército que entregaram no Rio 3 jovens para os traficantes que os mataram e depois de 12 anos nada aconteceu a não ser produzir um processo de 5 mil páginas. As mortes por policiais em São Paulo neste semestre cresceram assustadoramente e em nossos presídios há uma população carcerária sem julgamento maior do que a de julgados.
Algum fato desconhecido das nossas diferenças sociais, raciais e econômicas? Nenhum. A frase de que temos vários Brasis tem hoje uma conotação diferente: cada um de nós pertence a um Brasil diferente,marcado por diferenças principalmente sociais e econômicas. As diferenças no Brasil são disfarçadas de forma diferente do que na França. Um multiculturalismo que esconde profundas diferenças que nos levam viver cada um no seu canto. A distância que nos separa é muito maior do que a percebida ou pior, percebida e ignorada propositalmente.
Faça um teste simples: com quantas pessoas racialmente, culturalmente, de credo diferente você interage? O que você sabe da vida na favela, de andar de ônibus ou metrô, de escola pública ou não, no final de contas, da vida do seu bairro?
Na França as tensões sociais abruptamente mostram suas fissuras. Aqui as fissuras ficam ignoradas, debaixo do tapete, mostram-se em diferenças de grupos radicais políticos, mas na defesa de seus privilégios, e nos deixam viver numa paz duradoura de ilusão de que tudo está uma maravilha. Até quando?
9.6.2023.
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